Tudo era bem mais simples na década de 1960, quando comecei a me interessar por futebol. A Inglaterra acabara de vencer a Copa de 1966 e, portanto, não havia dúvida de que tinha o melhor time do mundo: isso era um fato, ponto, fim da história. Em seguida, tudo começou a degringolar e nunca mais voltou a ser como antes. Para começar, virei adulto e passei a ficar cada vez mais incomodado ao pensar no que significava pertencer a um país; ao mesmo tempo, a seleção de futebol da Inglaterra era um caso perdido. Ela nem sequer conseguiu uma vaga nas Copas de 1974 e 1978; aqueles estupendos jogadores que tanto nos haviam encantado na década de 1960 eram coisa do passado e, na década de 80, toda a questão do patriotismo e do futebol tornara-se muito mais complexa.
Hoje, quando nos vêm à memória os jogos da seleção naquela década, lembramos sobretudo das nuvens de gás lacrimejante, lançado pela polícia européia para dispersar a turba de torcedores ingleses que estava prestes a tornar-se um bando muito sinistro. Quando íamos ver um jogo da seleção no estádio de Wembley, muita gente em volta costumava fazer a saudação nazista na hora do hino nacional e insultar os jogadores negros – até mesmo os do nosso time. Às vezes parecia que a pior ralé, reunindo os piores torcedores de todos os times, tomava conta de Wembley para berrar insultos e entoar slogans contra o IRA. Quando víamos alguém se aproximando com a bandeira britânica estampada na camiseta, o melhor que tínhamos a fazer era atravessar a rua. A camiseta era um lembrete visual de uma mensagem que poderia ser traduzida assim: “Sou racista, mas odeio você seja qual for a cor de sua pele”.
Com tudo isso, algumas pessoas começaram a sentir um desconforto em torcer pela seleção. Em 1990, quando a Inglaterra enfrentou os Camarões nas quartas-de-final da Copa, não era nada difícil encontrar ingleses – liberais de classe média, é verdade, mas nem por isso menos ingleses – que torciam pela vitória camaronesa. Eu assisti ao jogo ao lado de algumas pessoas assim e, quando a Inglaterra perdia por 2 a 1 (acabou vencendo na prorrogação, 3 a 2), eles chegaram a comemorar. Aqueles brutamontes racistas e bêbados que se enrolavam na bandeira nacional... Bem, no fundo eu me identificava mais com eles do que com meus simpáticos amigos liberais. Afinal, como poderia deixar de torcer pela Inglaterra? Esse é um tipo de coisa em que não há escolha possível, certo? A Copa de 1990 acabou marcando a virada da Inglaterra. O time parou de dar vexames. Assim como os torcedores. Depois de duas décadas horrendas, a seleção voltou a mexer com os sentimentos dos ingleses.
O problema é que esse renascimento durou apenas cinco minutos. A nomeação de um técnico desastroso fez com que mais uma vez o time não se classificasse, em 1994. Aí, em 1998, o futebol já havia se tornado algo completamente diferente. Muitos dos jogadores da primeira divisão eram estrangeiros. A globalização do mercado de passes estava acabando com a graça dos jogos internacionais. No passado, a gente avaliava os melhores jogadores dos vários times e pensava: “Como seria se jogassem juntos?” E a resposta é que seria algo parecido com a seleção. Agora, porém, o Chelsea, o Manchester United, o Real Madrid, a Juventus, o Milan e o Barcelona tomaram o lugar das seleções como os times dos nossos sonhos.
Em 1989, enfrentando a Suécia, a Inglaterra conseguiu um empate de 0 a 0 que lhe garantiu uma vaga na Copa de 90. O que mais lembramos daquela partida é o capitão inglês Terry Butcher cheio de ataduras, com a camisa e o calção branco da Inglaterra empapados do sangue que não parava de escorrer de um ferimento na cabeça. “Fora do campo, sempre fui um cara tranqüilo e bem educado”, contou Butcher em uma entrevista. “Mas basta eu vestir uma camisa de futebol que viro bicho, como se estivesse em uma trincheira, com a baioneta pronta, disposto a matar ou morrer.”
Assim era a velha e boa Inglaterra: as imagens bélicas, o crucial empate de 0 a 0 obtido contra uma oposição tenaz, o inevitável abandono do estilo e do talento em favor da luta sem quartel. Aqueles que odeiam David Beckham, que a pouco tempo atrás era capitão da seleção, diriam que a única chance de vê-lo com uma baioneta e coberto de ataduras seria em uma festa a fantasia de alguma ridícula boate da moda. Isso não é lá muito justo, pois, a despeito de sua aparência e de sua fortuna, ele vem se esforçando bastante para compensar aquilo que lhe falta como jogador, sobretudo ritmo. Mas ninguém vai negar que Beckham é um rematado exemplo do novo tipo de esportista inglês: profissional, preocupado com sua imagem, ocasionalmente arrogante, e muito, muito rico.
Os torcedores ingleses que foram ao estádio ver, em 2005, o amistoso entre a Inglaterra e a Argentina (que terminou, no último instante, com uma vitória inglesa despropositada, mas emocionante) ainda cantaram o antigo refrão contra o IRA, e é quase certo que prefeririam ter visto em campo Terry Butcher e sua baioneta, e não David Beckham, um homem que, afinal, foi fotografado vestindo um sarongue. Por outro lado, essa é a cara da Inglaterra dos últimos anos. Claro que preferiríamos ainda estar bombardeando os alemães, mas, 60 anos depois, começa lentamente a surgir a desconfiança de que aquela época já ficou para trás. Enquanto isso, para dar uma surra nos argentinos, somos obrigados a depender de galãs multimilionários que usam sarongue. Ninguém está contente com isso, mas o que se pode fazer?
Fonte: National Geographic Brasil
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