quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Inglaterra Glória desbotada: vandalismo contido

Por: Nick Hornby

Tudo era bem mais simples na década de 1960, quando comecei a me interessar por futebol. A Inglaterra acabara de vencer a Copa de 1966 e, portanto, não havia dúvida de que tinha o melhor time do mundo: isso era um fato, ponto, fim da história. Em seguida, tudo começou a degringolar e nunca mais voltou a ser como antes. Para começar, virei adulto e passei a ficar cada vez mais incomodado ao pensar no que significava pertencer a um país; ao mesmo tempo, a seleção de futebol da Inglaterra era um caso perdido. Ela nem sequer conseguiu uma vaga nas Copas de 1974 e 1978; aqueles estupendos jogadores que tanto nos haviam encantado na década de 1960 eram coisa do passado e, na década de 80, toda a questão do patriotismo e do futebol tornara-se muito mais complexa.

Hoje, quando nos vêm à memória os jogos da seleção naquela década, lembramos sobretudo das nuvens de gás lacrimejante, lançado pela polícia européia para dispersar a turba de torcedores ingleses que estava prestes a tornar-se um bando muito sinistro. Quando íamos ver um jogo da seleção no estádio de Wembley, muita gente em volta costumava fazer a saudação nazista na hora do hino nacional e insultar os jogadores negros – até mesmo os do nosso time. Às vezes parecia que a pior ralé, reunindo os piores torcedores de todos os times, tomava conta de Wembley para berrar insultos e entoar slogans contra o IRA. Quando víamos alguém se aproximando com a bandeira britânica estampada na camiseta, o melhor que tínhamos a fazer era atravessar a rua. A camiseta era um lembrete visual de uma mensagem que poderia ser traduzida assim: “Sou racista, mas odeio você seja qual for a cor de sua pele”.

Com tudo isso, algumas pessoas começaram a sentir um desconforto em torcer pela seleção. Em 1990, quando a Inglaterra enfrentou os Camarões nas quartas-de-final da Copa, não era nada difícil encontrar ingleses – liberais de classe média, é verdade, mas nem por isso menos ingleses – que torciam pela vitória camaronesa. Eu assisti ao jogo ao lado de algumas pessoas assim e, quando a Inglaterra perdia por 2 a 1 (acabou vencendo na prorrogação, 3 a 2), eles chegaram a comemorar. Aqueles brutamontes racistas e bêbados que se enrolavam na bandeira nacional... Bem, no fundo eu me identificava mais com eles do que com meus simpáticos amigos liberais. Afinal, como poderia deixar de torcer pela Inglaterra? Esse é um tipo de coisa em que não há escolha possível, certo? A Copa de 1990 acabou marcando a virada da Inglaterra. O time parou de dar vexames. Assim como os torcedores. Depois de duas décadas horrendas, a seleção voltou a mexer com os sentimentos dos ingleses.

O problema é que esse renascimento durou apenas cinco minutos. A nomeação de um técnico desastroso fez com que mais uma vez o time não se classificasse, em 1994. Aí, em 1998, o futebol já havia se tornado algo completamente diferente. Muitos dos jogadores da primeira divisão eram estrangeiros. A globalização do mercado de passes estava acabando com a graça dos jogos internacionais. No passado, a gente avaliava os melhores jogadores dos vários times e pensava: “Como seria se jogassem juntos?” E a resposta é que seria algo parecido com a seleção. Agora, porém, o Chelsea, o Manchester United, o Real Madrid, a Juventus, o Milan e o Barcelona tomaram o lugar das seleções como os times dos nossos sonhos.

Em 1989, enfrentando a Suécia, a Inglaterra conseguiu um empate de 0 a 0 que lhe garantiu uma vaga na Copa de 90. O que mais lembramos daquela partida é o capitão inglês Terry Butcher cheio de ataduras, com a camisa e o calção branco da Inglaterra empapados do sangue que não parava de escorrer de um ferimento na cabeça. “Fora do campo, sempre fui um cara tranqüilo e bem educado”, contou Butcher em uma entrevista. “Mas basta eu vestir uma camisa de futebol que viro bicho, como se estivesse em uma trincheira, com a baioneta pronta, disposto a matar ou morrer.”

Assim era a velha e boa Inglaterra: as imagens bélicas, o crucial empate de 0 a 0 obtido contra uma oposição tenaz, o inevitável abandono do estilo e do talento em favor da luta sem quartel. Aqueles que odeiam David Beckham, que a pouco tempo atrás era capitão da seleção, diriam que a única chance de vê-lo com uma baioneta e coberto de ataduras seria em uma festa a fantasia de alguma ridícula boate da moda. Isso não é lá muito justo, pois, a despeito de sua aparência e de sua fortuna, ele vem se esforçando bastante para compensar aquilo que lhe falta como jogador, sobretudo ritmo. Mas ninguém vai negar que Beckham é um rematado exemplo do novo tipo de esportista inglês: profissional, preocupado com sua imagem, ocasionalmente arrogante, e muito, muito rico.

Os torcedores ingleses que foram ao estádio ver, em 2005, o amistoso entre a Inglaterra e a Argentina (que terminou, no último instante, com uma vitória inglesa despropositada, mas emocionante) ainda cantaram o antigo refrão contra o IRA, e é quase certo que prefeririam ter visto em campo Terry Butcher e sua baioneta, e não David Beckham, um homem que, afinal, foi fotografado vestindo um sarongue. Por outro lado, essa é a cara da Inglaterra dos últimos anos. Claro que preferiríamos ainda estar bombardeando os alemães, mas, 60 anos depois, começa lentamente a surgir a desconfiança de que aquela época já ficou para trás. Enquanto isso, para dar uma surra nos argentinos, somos obrigados a depender de galãs multimilionários que usam sarongue. Ninguém está contente com isso, mas o que se pode fazer?

Fonte: National Geographic Brasil

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O jogo da vida

por Sean Wilsey

Há muita vantagem em ser um torcedor americano da Copa do Mundo – e uma das principais é a ignorância. A comunidade onde crescemos não se reúne diante do aparelho de TV a cada quatro anos durante um mês inteiro, com o coração na mão. Nosso país nunca foi campeão. Podemos torcer para qualquer time, sem sentirmos vergonha ou temor. Não somos afetados pelos vínculos tribais de nossos compatriotas, alucinados por futebol. Enfim, somos apenas amadores, na acepção estrita desse termo. Assim, a Copa é o único acontecimento esportivo genuinamente internacional (não, as Olimpíadas, com seu confuso amontoado de provas de atletismo, jamais serão tão importantes no mesmo sentido) –, podemos nos preparar para passar um mês no paraíso.

É o que pretendo fazer. O mundo refletido na Copa é aquele em que eu gostaria de viver. Não consigo resistir à pompa e ao espírito altivo semelhantes ao das Nações Unidas, à exibição apolítica de características nacionais, à revelação de graves falhas humanas e inesperados momentos de grandeza, ao fato de que países inteiros deixam de ir ao trabalho ou acordam às 3 da madrugada para ver um bando de homens correr atrás de uma bola. Alguns países são representados por times multirraciais – como a França e a Inglaterra –, enquanto outras equipes são compostas só de loiros, ou de asiáticos ou de latino-americanos. Um vendedor de pneus eslovaco, um policial italiano ou um pianista alemão fazem jornada dupla como árbitros. E há as crianças que dão as mãos aos jogadores quando estes entram em campo. Os hinos nacionais. Os homens que se pintam com as cores de seu país e choram desbragadamente quando seu time é derrotado. Para citar aquele livro que todo atleta em viagem encontra em seu quarto de hotel: “Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mateus 5:12). Ou, como diz o meu exemplar de As Regras do Futebol, “Você está pronto? Pronto para instigar os jogadores à vitória, para maravilhar-se com sua resistência, velocidade e habilidade, estimulando-os a ganhar cada disputa de bola, preparado para poderosos chutes? Pronto para a excitação dos laterais que disparam em incríveis arrancadas, dos meias que avançam pelo campo adversário, das cobranças de escanteico com efeito, das tabelinhas perfeitas e dos gols aparentemente impossíveis? Pronto para mergulhar em um mundo de fantasia?”

Não admira que o futebol seja tão popular em todo o mundo. Uma explicação são duas coisas que sempre motivaram a humanidade: dinheiro e Deus. O futebol profissional movimenta muito dinheiro. Os clubes de futebol, tal como o capitalismo, resultam do desejo infantil de tornar reais os sonhos, seja qual for o custo – algo hoje concretizado por homens com recursos suficientes para juntar, por exemplo, o melhor atacante brasileiro, o melhor meia holandês, o melhor zagueiro britânico, o melhor goleiro alemão e colocá-los para enfrentar times da mesma qualidade, montados por outros bilionários. É uma situação injusta, claro, mas que reflete bem o mundo atual. Por outro lado, no futebol também encontramos o divino.

Afinal, esse jogo não é tudo o que deveria ser a religião? Universal e ao mesmo tempo particular, fonte de esperança sempre renovável e governado por leis simples e inequívocas, que todos podem entender. As regras do futebol promovem a igualdade, a contenção e a não violência, e são flexíveis o suficiente para ser reinterpretadas à vontade por um árbitro sensato. Vale o que o juiz decidir, por mais heterodoxas sejam suas decisões. O meu livrinho, depois de apresentar em detalhes as 17 regras oficiais do jogo, conclui dizendo que o juiz pode desconsiderar qualquer uma delas a fim de aplicar o que, de maneira um tanto mística, chama de “espírito de justiça”.

O substrato religioso do futebol fica mais evidente nos anos de Copa do Mundo. Times de todo o planeta convergem para o país-sede com o mesmo ânimo dos cruzados, mas desarmados e atléticos. E, tal como nas cruzadas, o país-sede tende a repelir esses invasores. Há uma curiosa e quase sobrenatural vantagem para a equipe que joga em casa. Em geral, seus jogadores obtêm um êxito desproporcional a seus talentos, triunfando sobre equipes melhores, como se ajudados por uma espécie de atração gravitacional que faz com que a partida seja mais favorável a eles ou, para levar essa metáfora a sua conclusão lógica, como se contassem com o apoio de Deus.

Todo mundo sabe que o futebol, tal como a religião, está na origem de muita violência. Mas o futebol também sobressai por sua capacidade de atenuar diferenças e subverter preconceitos nacionais. O mero fato de uma Copa do Mundo ter sido sediada simultaneamente na Coréia do Sul e no Japão, como ocorreu em 2002, foi uma vitória do espírito de tolerância e entendimento entre os povos. Em menos de meio século, os sul-coreanos passaram de uma atitude de intransigência, quando proibiram a entrada no país da seleção japonesa na fase de classificação para a Copa de 1954, para outra, em que aceitaram sediar o torneio em conjunto com uma nação que já os havia ocupado militarmente. Se concedermos ao mundo mais 50 anos, aposto que ainda veremos uma Copa sediada conjuntamente por Israel e a Palestina.

E por que não? A universalidade do futebol deve muito à sua simplicidade – ao fato de que é possível jogar futebol em qualquer lugar e de qualquer maneira. Esse jogo maravilhoso – essa mescla de negócio e religião, vamos dizer assim – vai mostrar sua face mais injusta, frustrante e magnífica sempre. E o que torna a Copa tão bela é o próprio mundo, a reunião de todos nós. A alegria de ser um dentre mais de 1 bilhão de pessoas que vão acompanhar as seleções de 32 países submetidas a 17 regras, reforça em mim a certeza de que o futebol é um elemento de união imprescindível para todos nós.

Fonte: National Geographic Brasil